quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Max Weber e a ética protestante


Max Weber imortalizou a teoria que mostra a diferença entre as sociedades protestantes - luteranas e calvinistas - e as sociedades católicas no que diz respeito à ética econômica. Segundo ele, a teologia protestante liberou o homem para a aquisição monetária. Para o protestantismo europeu, os homens estariam predestinados, alguns seriam salvos e iriam para o céu e outros condenados ao fogo do inferno. Isso não dependia de obras, era uma predestinação. Restava a cada homem procurar um certo consolo psicológico que o levasse a crer que seria um dos escolhidos. Essa segurança psicológica era fornecida por uma permanente glorificação de Deus por meio do trabalho.
Antes dessa doutrina, o trabalho era malvisto. Apenas aqueles que iam para os monastérios estavam assegurando a sua salvação. Os demais homens, que viviam fora dos conventos, trabalhando, quase certamente iriam para o inferno. Lutero quis ser religioso justamente para assegurar sua salvação. A sua mudança de rota, decidindo não mais seguir a carreira monástica, só poderia ser conciliada com a salvação caso ela fosse obtida por outros meios, e este seria o trabalho.
É interessante o que a doutrina luterana e a calvinista fazem - democratizam o acesso à salvação. Antes, a salvação era obtida por meio da vocação religiosa, da compra de indulgências e de outros caminhos a que nem todos tinham acesso, como a realização de obras de caridade e boas ações. Como afirmara Weber, o catolicismo da época exigia que o homem fosse para "fora do mundo" caso quisesse obter a salvação. O que Lutero e Calvino criaram foi a salvação, ou melhor, a crença de que se era um dos escolhidos por meio de ações "dentro do mundo". Muito simples: bastava trabalhar. Algo mundano, algo que todos faziam. Foi criada então a ética do trabalho. Trabalha-se, trabalha-se, cada dia mais, apenas para glorificar Deus. O trabalho gera riqueza e a riqueza é acumulada. Surge o espírito do capitalismo como resultado não intencional da ética protestante.
Mas será que foi realmente isso que aconteceu? Weber poderia ter errado? Suas evidências poderiam ter sido mais anedóticas do que realmente estatísticas? O belo estudo de Sascha O. Becker e Ludger Wossmann, "Was Weber Wrong?", dedica-se a essa questão.
Toda religião trata de diversos assuntos. Com o protestantismo não foi diferente. Comparada à do catolicismo, a ética do trabalho era diferente. Porém, o que diziam o luteranismo e o calvinismo em relação ao estudo? E em relação ao sagrado? Qualquer que fosse o assunto, o espírito do protestantismo era a democratização. O trabalho democratizava o acesso à sensação de salvação. A tradução da "Bíblia" para o alemão democratizava o acesso à palavra de Deus. A redução do número de sacramentos, dos sete da Igreja Católica para apenas dois, o batismo e a comunhão, diminuía a presença do sagrado no dia-a-dia das pessoas, o que também consistia uma mudança democrática. E assim por diante.
A "Bíblia" só existia em latim até o dia em que Lutero decidiu colocá-la no alemão. Mas seria inútil que a palavra de Deus fosse passada para a língua germânica caso as pessoas não fossem capazes de lê-la. Assim, a teologia luterana e calvinista pregava a democratização do acesso à capacidade de ler.
Sabe-se, em razão de inúmeros bons estudos acadêmicos, que o sistema educacional da antiga Prússia foi baseado na igreja luterana. Os nobres, que no catolicismo punham seus recursos financeiros no sustento de monastérios e conventos, com o seu fechamento decidiram redirecionar os recursos para educar a população. Conseqüentemente, alguns países largaram na frente quando o assunto foi a educação de toda a população: Suíça, Holanda, o território que se tornaria a moderna Alemanha e a Inglaterra. Uma curiosidade sobre a Suíça: além da valorização da "educação para todos", a teologia calvinista retirou o caráter pecaminoso da cobrança de juros. Não por acaso a Suíça saiu na frente, na Europa, na formação do sistema bancário.
Na Europa continental o desenvolvimento econômico coincidiu com o mapa da expansão do luteranismo. Sascha O. Becker e Ludger Wossmann mostraram por meio de modelos estatísticos sofisticados, mas traduzidos em mapas bastante compreensíveis, que o nível educacional e, como conseqüência, o desenvolvimento estiveram fortemente correlacionados com a força da religião reformada. No mapa 1 o xis preto mostra a cidade de Lutero. A religião que ele fundara era mais forte perto de sua cidade e mais fraca à medida que as regiões ficavam mais distantes. A área em vermelho indica que mais de 75% da população adulta era protestante no século XIX. Na área cinza a proporção de luteranos fica entre 25 e 75% e nas regiões azuis era menor do que 25%.
Não é coincidência, quando sabemos o que diz a teologia luterana acerca da necessidade de educar as pessoas e treiná-las a ler e escrever, que o mapa 2 indique a correlação entre nível de alfabetização e a popularidade do luteranismo. As áreas em vermelho mostram onde a alfabetização era maior do que 92%. Em cinza estão os locais com alfabetização entre 85 e 91% e em azul as regiões onde a taxa de alfabetização era menor do que 85%.
A religião teve impacto na educação e esta, por sua vez, teve impacto no desenvolvimento econômico. Isso é o que se vê nos mapas 3 e 4. Eles mostram o emprego no setor mais dinâmico da economia e a renda em marcos. Em vermelho estão os locais onde mais de 30% da população estava empregada na indústria e nos serviços. Em azul, onde menos de 22% trabalhavam nesses setores e em cinza, onde de 22 a 30% da população era empregada pela indústria e serviços. Mais uma vez, no mapa 4 o vermelho indica uma renda mais alta, acima de 940 marcos. Em azul estão as regiões de renda mais baixa do que 850 marcos e em cinza a renda intermediária.
Ficou provado que Weber estava errado, ainda mais quando se sabe que os autores do estudo controlaram a análise estatística por outras variáveis. Para Weber, o capitalismo e o desenvolvimento estavam correlacionados com uma ética do trabalho que só o protestantismo tinha. Para nossos modernos autores, que hoje podem lançar mão de modernas técnicas estatísticas, o desenvolvimento está correlacionado, sim, com a religião, mas não por causa da ética do trabalho - por causa da ética da educação.
Aliás, faz muito mais sentido imaginar que o desenvolvimento esteja relacionado com a educação do que com uma suposta ética do trabalho. O capitalismo não nasceu porque as pessoas passaram a valorizar mais o trabalho, mas porque passaram a ter mais qualificação para trabalhar de forma mais produtiva. Mais do que isso, o aumento do nível educacional tem impacto em outros fatores sociais também importantes: aumenta a participação política e o associativismo, facilita o desenvolvimento de diferentes modalidades de ação coletiva e assim por diante.
Isso é uma boa notícia para os países que não têm matriz católica, como é o Brasil. É mais fácil melhorar o nível educacional de um país do que fazer as pessoas valorizar mais o trabalho. Há um grande empecilho para melhorar o nível educacional do Brasil: educação não dá voto. Isso ocorre porque a população não dá valor à educação. Portanto, se avançarmos em tais indicadores isso será resultado de uma decisão da elite empresarial e governante. Aliás, um segmento importante da elite empresarial já está sentindo pesadamente o efeito da baixa qualificação de nossa mão-de-obra. A escassez desse pessoal tende a aumentar e, portanto, aumentará também a pressão do mundo dos negócios sobre Brasília e outros centros de decisão.
Em breve, sem o protestantismo como nossa matriz social, passaremos a trilhar o mesmo caminho de outros países católicos que decidiram tirar o atraso em relação aos países protestantes. Alguns exemplos são a Irlanda, a Espanha e a Itália. Portugal ainda é um dos países europeus mais atrasados no nível educacional. Quiçá o Brasil trilhará o caminho dos primeiros.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record)
Em 28/03/2008

Fonte: Valor Econômico